quarta-feira, 16 de setembro de 2009

EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: um olhar sobre o currículo das escolas da rede municipal de ensino

Raphael dos Santos [1]


À medida que o homem é caracterizado como um ser histórico capaz de descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica em contínuo processo de formação, a educação configura-se como principal alicerce da vida social, pois é um instrumento de socialização dos códigos sociais (organização política, econômica e social), de ampliação da cultura e mais do que isso, é uma prática de libertação e humanização da consciência coletiva.
Nesse debate, o currículo escolar deve privilegiar a reflexão sobre o tipo de homem que pretende formar e o seu modo de vida, pois a escola, antes de tudo, é uma instituição que existe em um contexto histórico de uma dada sociedade/cultura.
Dessa forma, retomar a discussão do Projeto Político Pedagógico e da Proposta Curricular nas escolas da rede de ensino no município de Adustina é sempre necessário, haja vista que a escola é historicamente produzida e, em seu movimento dialético, necessita ser pensada continuamente. O PPP constitui-se em um instrumento de organização do trabalho pedagógico e democratizar a (re) construção do documento implica dar novo sentido às relações que se estabelecem no interior e no entrono escolar, uma vez que mobiliza os sujeitos na organização, formulação, implantação, reelaboração da concepção e das ações para o enfrentamento da realidade e das necessidades educativas dos sujeitos escolares.
Por isso a proposta da Secretaria Municipal de Educação não é apenas fazer uma revisão das concepções e orientações evidenciadas no PPP de cada escola, mas fazer uma releitura crítica e coletiva ao ponto de perceber que apesar do município possuir a agricultura como principal fonte de economia, com uma população, predominantemente rural e em próspero desenvolvimento sócio-econômico, ainda prevalecem práticas pedagógicas e curriculares distanciadas dos fundamentos e princípios filosóficos e pedagógicos da Educação do Campo.
Ao resgatar a dimensão sócio-política da Educação do Campo se exige dos sujeitos educativos distintas formas de organização do trabalho pedagógico e do trato com o conhecimento, apontando tanto para a busca de processos participativos de ensino e aprendizagem, quanto de ação social para a transformação. Dessa maneira a Educação do Campo evidenciará o respeito à diversidade cultural e às realidades que fazem parte das comunidades.
A Educação do Campo advoga princípios filosóficos [2] que dialogam com concepções de sociedade, de desenvolvimento e de educação:
a) Educação para a transformação social – Na Educação do Campo o processo educativo é compreendido como uma prática de liberdade, vinculado à dinâmica social e poderá contribuir com os processos de transformações sociais, visando à justiça e à humanização da sociedade. Poderá possibilitar a intervenção consciente no processo histórico, o que implica a defesa do vinculo orgânico entre os processos educativos e os processos políticos, econômicos e culturais.
b) Educação para o trabalho e a cooperação – O entendimento do trabalho é fundamental para a compreensão das relações sociais e do processo de formação e desenvolvimento do ser humano e da sociedade. O trabalho, visto como base para a sociedade transforma a natureza e produz os bens materiais e não-materiais como o saber, a tecnologia, o alimento, o abrigo, a arte, necessários para a vida humana.
c) Educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana – A educação abrange várias dimensões da pessoa humana as quais constituem o processo formativo. Compreende que os sujeitos possuem história, participam de lutas sócias, produzem arte, fazem parte de grupos, de gêneros, de etnias e de classes sociais diferenciadas. Portanto, o Currículo se desenvolve das formas mais variadas de construção e reconstrução do espaço físico e simbólico, do território e do meio ambiente buscando integração do trabalho pedagógico.
d) Educação para os valores humanistas – A formação humana é todo o processo educativo que possibilita ao sujeito constituir-se enquanto ser social responsável e livre, capaz de refletir sobre sua atividade, capaz de ver e corrigir os erros, capaz de cooperar e de relacionar-se eticamente, capaz de defender a igualdade e a justiça. Esse processo engloba conhecimentos, atitudes, valores e comportamentos construídos no processo educativo.
e) Valorização dos diferentes saberes no processo educativo – A escola precisa resgatar, dentro da sala de aula, os saberes comunitários e relacioná-los com as diferentes áreas do conhecimento. Os que vivem no campo podem e têm condições de pensar uma educação que traga como referência as suas especificidades para incluí-los na sociedade como sujeitos de transformação.
f) Diversidade de espaços e tempos educativos – A Educação do Campo ocorre tanto em espaços quanto fora deles. Envolve saberes, métodos, tempos e espaços físicos diferenciados, pois são frutos da produção, da família, da convivência social, da organização comunitária, da cultura e do lazer. A sala de aula, por sua vez, é um espaço especifico de sistematização, de análise e de síntese das aprendizagens se constituindo, assim, num local de encontro das diferenças, pois é nelas que se produzem novas formas de ver, estar e se relacionar com o mundo.
g) Educação como estratégia para o desenvolvimento sustentável – O desenvolvimento sustentável pode ser pensado a partir do estudo da relação do ser humano com a natureza, da situação histórica particular de cada comunidade, e da análise dos recursos disponíveis, das expectativas, dos anseios e das necessidades dos que vivem no campo. O currículo das escolas do campo deve estimular a criação de novas relações entre pessoas e natureza, entre os seres humanos e os demais seres dos ecossistemas, valorizando a vida, e sua sustentabilidade.
h) Vivência de processos democráticos e participativos – A escola do campo deve permitir a educadores (as), gestores e a família a vivência de processos democráticos em estruturas participativas. Esses processos devem contribuir para o desenvolvimento da capacidade de agir por iniciativa própria, respeitar as decisões tomadas no coletivo, buscar a solução de problemas, exercitar a critica e auto-critica, ter compromisso pessoal com ações coletivas e o compromisso coletivo com as ações individuais.
Desse modo, o campo é um espaço rico e diverso, que tem suas especificidades e ao mesmo tempo é produto e produtor de cultura. É um espaço emancipado, um território fecundo de construção da democracia e da solidariedade, ao transformar-se no lugar não apenas das lutas pelo direito a terra, mas também, pelo direito à educação, à saúde, à organização da produção e pela preservação ambiental.
Tendo como referência esse entendimento é que se concebe a educação do campo como toda ação educativa que incorpora o múltiplo, o plural. Mais do que um perímetro não urbano, expressa um conjunto de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições de existência social e com as realizações da humanidade.
A Resolução Nº 1/2002 do CNE/CEB que estabelece as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, expressa no Art. 2º que:



  • A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação as questões inerentes a sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.

Nesse contexto, a educação do campo deve compreender que os sujeitos têm história, participam de lutas sociais, têm nome e identidades, gêneros, raças, etnias e gerações diferenciadas. O que significa que o currículo precisa levar em conta as pessoas e os conhecimentos que eles possuem, seus núcleos familiares e comunidades, estabelecendo um diálogo permanente com os saberes produzidos nos diferentes contextos.
Pensar em currículo para as escolas do campo perpassa pela diversidade de saberes, métodos, conteúdos e espaços diferenciados. Portanto, não são apenas os saberes construídos na sala de aula, mas também aqueles construídos na produção agrícola, na família, na convivência social, na cultura, no lazer e nos movimentos sociais. A sala de aula é um espaço específico de sistematização, análise e de síntese das aprendizagens, constituindo-se assim, num local de encontro das diferenças, pois, é nela que se produzem novas formas de ver, estar e se relacionar com o mundo.
Além disso, se a intenção dessa proposta perpassa pela compreensão da relação entre currículo e desenvolvimento econômico e social das populações campesinas do município de Adustina, faz-se necessário definir o que vem sendo compreendido como Desenvolvimento Sustentável ou Sustentabilidade.




  • A Sustentabilidade é um relacionamento entre sistemas econômicos dinâmicos, embora de mudança mais lenta, em que: a) a vida humana pode continuar indefinidamente; b) os indivíduos podem prosperar; c) as culturas humanas podem desenvolver-se, mas em que; d) os resultados das atividades humanas obedecem aos limites para não destruir a diversidade, a complexidade e a função do sistema ecológico de apoio a vida (SACHS apud, REIS, 2004, p. 68).


Cultivar a idéia de desenvolvimento sustentável supõe novas relações entre as pessoas e a natureza, entre os seres humanos e os demais seres dos ecossistemas. Ao conciliar as atividades econômicas e o meio ambiente, o coletivo deve considerar o respeito com o ecossistema, de forma a preservar a natureza, garantindo o bem-estar social.
Pensar a educação na relação com o desenvolvimento sustentável é pensar a partir da idéia de que o local, o território pode ser reinventado através das suas potencialidades. Uma das formas de trazer à tona essas potencialidades está na revitalização da importância do coletivo como método de participação popular de gestão das políticas e das comunidades onde vivem.
Para tanto, conforme argumenta Alves (2002), a realidade, o cotidiano, o meio e todas as relações subjetivas, sociais, culturais, produtivas e necessidades locais, devem servir como elementos norteadores na organização do currículo na perspectiva de fortalecer a identidade dos sujeitos e melhorando as condições de convivência no campo.
Nesse contexto, antes de ser uma proposta pré-definida, o currículo deve orientar-se pelo diálogo constante com a realidade, na interação dos sujeitos com a comunidade, estruturando-se em questões problematizadoras que articulem os conteúdos a partir da realidade prática dos alunos.
Por isso, as discussões como: o estudo das relações com a terra; a interpretação de paisagens; o trabalho e seus significados; desenvolvimento sustentável; o homem e a mulher e o meio ambiente no semi-árido; o exercício da cidadania e políticas públicas, são proposições de conhecimentos que podem ser desenvolvidos como eixos temáticos, temas transversais e interdisciplinares no diálogo com as áreas do conhecimento de Matemática, Língua Portuguesa, História, Geografia e Ciências.
A proposta é desenvolver nos alunos habilidades e competências comuns a todas as escolas e conteúdos específicos, de acordo com as características regionais, locais, econômicas e culturais da comunidade onde a escola está inserida. Assim, os temas locais articulam-se com os conteúdos comuns na perspectiva de fortalecer o desenvolvimento do campo.
As práticas sociais como produtoras de significados devem servir de referências para que as áreas de estudos (re) signifiquem o conteúdo de sua contribuição na explicitação da temática estudada. Uma das perguntas orientadoras na implementação do currículo são: quais as contribuições da História, das Ciências, da Geografia, da Matemática entre outras, para a compreensão e explicação dos conhecimentos presentes na vida do aluno? Quais as articulações desses conhecimentos com o desenvolvimento econômico, cultural e social da população do campo?
Repensar a lógica da organização do conhecimento significa entender o currículo como uma rede de conversação, marcada pela multiplicidade de saberes produzidos pelos sujeitos diversos. Essa concepção fundamenta-se no pressuposto de que o conhecimento é produzido em rede, numa dimensão complexa que abrange a plena conexão entre os fenômenos naturais e sociais.
A partir dessa compreensão torna-se indispensável romper com uma estrutura curricular compartimentada, fundamentada no isolamento das áreas do conhecimento. Parte-se do pressuposto de que os conhecimentos são interdependentes e se complementam. Conforme Morin (2001) um saber necessita de outros saberes para uma compreensão mais integrada e completa do todo.
Mais do que uma relação de reciprocidade, mutualidade e interação que irá possibilitar o diálogo entre as disciplinas numa perspectiva interdisciplinar, como ressalta Fazenda (apud Souza, 2005), a escola precisa se perceber parte de um todo social e complexo cujas ações influenciam a vida de uma determinada sociedade. O currículo não está isento da responsabilidade de refletir as problemáticas sociais vinculadas ao universo no qual esta situado.
Busca-se outro tipo de organização curricular que propicie um novo modo de construção e aquisição do conhecimento, talvez alicerçada numa proposta interdisciplinar e transversalizada, materializada na organização dos conteúdos através da problematização e contextualização pedagógica.
Nesse sentido, a proposta é favorecer o desenvolvimento das capacidades de diferenciação e identificação, sem fragmentação de conhecimentos, com a intenção de ao mesmo tempo, integrar os conteúdos escolares nas situações práticas, utilizar os significados e as idéias que os alunos trazem dos diferentes contextos, levando-os a ampliar o potencial cognitivo e acima de tudo formando o sujeito crítico e participativo.
Como argumenta Hernández (apud, Souza, 2001) o enfoque interdisciplinar sugere organizar o currículo por projetos de trabalho, investindo na construção do conhecimento numa perspectiva relacional, transformando a sala de aula num espaço significativo de aprendizagem e num ambiente cooperativo na tomada de decisões coletivas.
Trabalhar com projetos de aprendizagem pressupõe conceber a pesquisa como princípio educativo na qual favorece a criação de estratégias de organização dos conteúdos em relação ao tratamento da informação em torno dos problemas ou hipóteses apresentadas pelos alunos, pois o “motor da aprendizagem” é o aprendiz, este é considerado o sujeito da aprendizagem capaz de pensar, analisar, discutir, construir e elaborar o próprio conhecimento.Por tudo isso, o maior desafio da educação do campo é desconstruir a idéia de currículo fechado, autoritário e padronizado. E isso exige do professor saber lidar com essa situação caótica e desconfortável de sair da sua zona de conforto rumo a outro nível de compreensão da educação.
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[1] Graduado em Pedagogia pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais/BA, Especialista em Educação e Gestão pela Faculdade Pio Décimo/SE. Atualmente, é responsável pela Coordenação Pedagógica da rede de ensino do município de Adustina/BA e atua como formador nacional do Programa Escola Ativa. E-mail: phbrasil_@hotmail.com
[2] Os princípios definidos nesse texto se fundamentam, em grande parte, nos princípios contidos nas Referências para uma Política Nacional de Educação do Campo.